A leishmaniose é uma doença parasitária causada por protozoários do gênero Leishmania, parasitas intracelulares obrigatórios de mamíferos. A leishmaniose tegumentar americana é a mais frequente forma da doença no Novo Mundo e a Leishmania (Viannia) braziliensis é a principal espécie causadora da doença no homem nas Américas.
A leishmaniose tegumentar americana (LTA) representa um importante problema de saúde pública devido à sua incidência, pelo risco de ocorrência de deformidades no hospedeiro humano e por seus reflexos no campo social e econômico, uma vez que pode ser considerada uma doença ocupacional na maioria dos casos. As regiões Norte e Nordeste concentram a maioria das ocorrências da LTA, com 45,7 e 26,8% do número de casos registrados entre 2007 e 2015, respectivamente. Na Bahia, no mesmo período foram registrados 30.126 casos de LTA, o que representa 14,9% de todos os casos ocorridos no país.
A leishmaniose cutânea (LC) é a forma mais comum da LTA e é caracterizada por uma úlcera bem delimitada com bordas elevadas. A doença é transmitida ao homem pela picada pelo flebótomo do gênero Lutzomia,comumente conhecido como “mosquito palha”.
O cão é um reservatório importante da Leishmania infantum, parasito que causa a forma visceral da doença, comumente conhecida como calazar e esse animal tem importante participação na epidemiologia da leishmaniose visceral humana. Todavia, a participação do cão na via de transmissão da L.braziliensis para o homem ainda não foi descrita.
A vila de Corte de Pedra situada no Sudeste do Estado da Bahia consiste numa área rural de Mata Atlântica parcialmente desmatada, uma região de floresta tropical caracterizando-se por ser quente e úmida, sem estação seca. Tem como principal fonte econômica a atividade agrícola, o que deixa a população mais exposta à essa infecção. O sudeste da Bahia e mais especificamente a região no entorno da vila de Corte de Pedra é a principal área endêmica de leishmaniose tegumentar na América Latina. A região está localizada a 280 km ao sul de Salvador, sendo composta por 20 municípios. O Posto de Saúde de Corte de Pedra é um Centro de Referência para o diagnóstico e tratamento da LTA e é o núcleo para as pesquisas clínicas e epidemiológicas realizadas pela equipe do Serviço de Imunologia do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgar Santos (SIM/C-HUPES) e do Instituto Gonçalo Muniz FIOCRUZ-BA.
Em 2016 identificamos 61 cães com lesões suspeitas de leishmaniose tegumentar canina em bairros da vila de Corte de Pedra e foi feito nesses animais o diagnóstico da leishmaniose por detecção do DNA da ou por documentação da leishmania em biópsia das ulceras. Detectamos também que esses animais produziam anticorpos contra L.braziliensis e que apresentavam positividade à reação intradérmica de Montenegro métodos adicionais utilizados para o diagnostico da leishmaniose tegumentar. Dos 61 cães estudados, DNA de L. braziliensis foi detectado em 41 (67,2%) e a sorologia foi positiva em 78% e o DTH (+) em 75% dos animais. A histopatologia foi caracterizada por reação inflamatória, necrose, fibrose e presença de parasitos em grande quantidade, aspectos semelhantes aos encontrados nas lesões de pacientes com LC. A análise genotípica dos isolados de L. braziliensis, mostrou semelhança genética entre L.braziliensis isoladas dos cães e de 113 isolados de L.braziliensis obtidos de pacientes com leishmaniose cutânea da mesma área endêmica diagnosticados no período de 2008-2011(Lago et al, Plos Negleted,2019). As fotos abaixo revelam a semelhança entre a leishmaniose tegumentar canina e a humana.
Posteriormente em 2018 foi iniciado um estudo de coorte nessa área endêmica para determinar o papel do cão como reservatório de Leishmania braziliensis e sua participação no ciclo de transmissão da doença para o homem. Foram examinados 214 cães com lesões e sem lesões em residências de sete bairros no raio de 20 km do posto de saúde de Corte de Pedra. A prevalência da infecção (animais sem lesão, mas infectados por L.braziliensis) foi 35% e a prevalência da doença foi de 31%.
Na leishmaniose visceral, já está bem documentado que o cão é um importante reservatório da Leishmania infantum e da participação deste, na cadeia de transmissão da doença. Nessa doença, a eutanásia dos cães é uma medida preconizada pelo Ministério da Saúde. Alternativamente, a vacinação de cães, o tratamento de cães infectados e o uso de coleiras impregnadas com deltametrina são medidas também utilizadas. Dentre estas estratégias, a última apresenta resultados promissores quanto à sua utilização como medida de saúde pública. Ainda assim, a eutanásia combinada com a borrifação de domicílios, constitui a principal linha de ação implementada pelo Ministério da Saúde no Brasil.
Os dados desses estudos revelam que a prevalência da infecção por L. braziliensis em cães e da leishmaniose tegumentar canina é alta na área endêmica de Corte de Pedra, sendo a relação infecção: doença de 2: 1,Esses dados sugerem fortemente a participação do cão na cadeia de transmissão da L.braziliensis nessa região. Uma documentação preocupante no nosso estudo foi o achado que 26% dos animais com leishmaniose tegumentar canina identificado nesses estudos foram mortos por vizinhos ou pelo próprio proprietário no período de um ano. A documentação da alta prevalência de leishmaniose tegumentar canina nessa região, da provável participação do cão na via de transmissão da infecção pela L.braziliensis e o sacrifício de um percentual elevado dos cães, apontam para a necessidade do Ministério da Saúde de estabelecer medidas para o controle da infecção canina por esse parasito, seja por meio da prevenção ou instituição de tratamento adequado para a leishmaniose nesses animais.